sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Para um amigo tenho sempre um relógio

"Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol."

António Ramos Rosa

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Era preciso

Era preciso que eu fosse outro
e os outros de outra maneira.
Era preciso que o fio que escorre
Fosse pranto do lagar que ferve.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Re-volta

"Quero o fim da amargura
dos homens e dos metais
que a autêntica liberdade
deixe de ser um sonho
e aquela ronda famosa
dos homens e das mulheres
que dançam de mão dada
traga as espigas por nascer
das searas
de infinda alegria"

Dedicáfio

"Para ti,
Com carinho, o nosso,
A nossa amizade e este amor
Que nos faz perder nas palavras."

sábado, 24 de dezembro de 2016

Memória de elefante

Num lugar que não dá pra ver daqui
Mora um relógio que não quer parar.
(...)
Agora já não sou quem eu queria
Agora já não sou quem dizia.
(...)

sábado, 10 de dezembro de 2016

Quase


uma mulher quase nova
com um vestido quase branco
numa tarde quase clara
com os olhos quase secos

vem e quase estende os dedos
ao sonho quase possível
quase fresca se liberta
do desespero quase morto

quase harmónica corrida
enche o espaço quase alegre
de cabelos quase soltos
transparente quase solta

o riso quase bastante
quase músculo florido
deste instante quase novo
quase vivo quase agora

Poema e pintura de Mário Dionísio

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Treze linhas para a vida

1. Gosto de ti não por seres quem és, mas por quem eu sou quando estou contigo.
2. Ninguém merece as tuas lágrimas, e quem as merece não te fará chorar.
3. Só porque alguém não te ama como tu queres, não significa que não te ame com todo o seu ser.
4. Um verdadeiro amigo é quem te pega pela mão e te toca o coração.
5. A pior forma de sentir falta de alguém é estar sentado a seu lado e saber que nunca vai poder tê-lo.
6. Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiveres triste, porque nunca se sabe quem se pode apaixonar pelo teu sorriso.
7. Pode ser que sejas apenas uma pessoa para o mundo, mas para uma pessoa você seres o mundo.
8. Não passes o tempo com alguém que não está disposto a passar o tempo contigo.
9. Talvez Deus queira que tu conheças muita gente errada antes que conheças a pessoa certa, para que quando finalmente conheceres esta pessoa saibas estar agradecido.
10. Não chores porque já terminou, sorri porque aconteceu.
11. Sempre haverá gente que te magoa, mas continua a confiar e sê mais cuidadoso escolher em quem confias.
12. Torna-te uma pessoa melhor e vais ver como vai ser mais fácil verem como tu és.
13. Não te esforces tanto, as coisas melhores acontecem quando menos esperamos.

(Gabriel Garcia Marques)

sábado, 22 de outubro de 2016

Não te apaixones por mim.

Não te apaixones por mim.
Há dias em que estou triste sem razão e fico a olhar para o tecto com lágrimas a escorrer-me pela cara abaixo.

Não te apaixones por mim.
Nesses dias, não falo com ninguém. Afundo-me na cama e interrogo-me sobre como me transformei neste caos triste.

Não te apaixones por mim.
Vou ficar ligado a ti e vou chorar até adormecer se não me envias uma mensagem de boa noite antes de adormeceres e vou convencer-me de que te fartaste de mim.

Não te apaixones por mim.
Sou exagerado. Vou ficar dependente de ti. Preciso de atenção, muito mais do que os outros. Vou falar contigo por metáforas e vou fazer de ti uma metáfora. Vou escrever poemas sobre ti até tarde.

Não te apaixones por mim.
Acharia insuportável chegares a casa e encontrares-me no chão da casa de banho a tremer e a chorar, com sangue a sair dos meus pulsos. Ia achar insuportável a desilusão nos teus olhos.

Não te apaixones por mim.
Vou deixar sair para ti tudo o que sobra de mim, tudo o que é amor, até não ter mais nada para dar. Até ficar completamente vazio.

Não te apaixones por mim.
Tenho medo de a minha tristeza ser contagiosa.

Não te apaixones por mim.
Vou ouvir as tuas palavras doces na minha cabeça sempre que me quiser matar. E serão elas o único motivo para ficar.

Não te apaixones por mim.
Vais viver em pânico. Não vais ser capaz de me deixar sozinho porque sabes que se o fizeres, perco os motivos para viver.

Não te apaixones por mim.
Antes de te conhecer, ninguém me fez ficar. Agora és a minha razão.

Não te apaixones por mim.

Porque me vou apaixonar por ti.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Notas soltas para harmonização de vinhos e música.


Há pontes evidentes entre música e vinho e todas elas decorrem da característica intrinsecamente vibratória da música. Os aspectos harmónicos e inarmónicos da vibração ocorrem também dentro do vinho. Qualquer líquido ou sólido a transportam de forma imanente e única. A própria molécula elementar tem uma vibração latente entre os seus átomos que definem tanto o seu estado energético como o comportamento numa reacção química. Por outro lado, o estímulo da vibração induz nos líquidos alterações que são objecto de estudo e caracterização. O vinho é particularmente sensível ao estímulo vibratório. Uma cave de vinhos na qual queremos estagiar e manter os nossos vinhos por muitos e bons anos deve, por isso mesmo, ser imune à vibração e sobretudo não ter, ela própria, um ambiente demasiado vibratório. Os armários climatizados para vinhos que hoje se vendem e aos quais confiamos as nossas mais preciosas garrafas, garantem não só temperatura e humidade constantes, mas também ausência de vibração. Isto faz com que os vinhos evoluam tranquilamente, de acordo com os seus componentes e perfil, em vez de por estímulos exteriores.
Vinho é complexidade. Aromas, sabores, sensações, entrada de boca, meio de boca, fim de boca, retronasais, bouquet, são inúmeras as portas de entrada de um bom vinho. Podem, por isso, ser eles próprios estados de alma. E como sabemos que é verdade que um mesmo vinho há dias que nos apetece, contra outros em que não nos apetece nada. Um pouco como as relações entre as pessoas, que conhecem melhores e piores dias consoante os ânimos e os astros, apesar de as pessoas serem as mesmas (serão?...)
Eu tenho particular dificuldade em não pensar em que vinho me evoca a voz de alguém que acabo de conhecer. Reconheço no timbre, intensidade, aresta, rugosidade e flutuações da voz características que são quase directamente transponíveis, sem mais, para o ambiente conjunto de taninos e acidez de um vinho. Uma voz esganiçada é um vinho com taninos muito verdes sobre os quais cai uma acidez desequilibrada. Já uma voz de peito e doce, como é a voz de uma mãe, evoca taninos muito finos, com uma acidez escondida, quase imperceptível. A voz do pai, essa é normalmente “feita” de taninos redondos, maduros, suportando uma acidez maior, pelo ambiente também ele maior.
Os estudos musicais para que os meus pais me conduziram na infância e na juventude foram causa de dor e sofrimento, ligados ao sentimento geral de “não ser capaz” que só não experimentou quem nunca se dedicou a um instrumento. Passados alguns anos deram contudo numa fonte de grande prazer, partilhado com outros. A minha relação com o piano é bonita e cabe nela praticamente todo o meu mundo. Toco mal, mas tenho um gozo tremendo a tocar, e aproveito para pôr a conversa em dia com pessoas que não tenho mais ao pé de mim. Os cerca de 10 anos que dediquei ao órgão de tubos de S. Domingos, por motivos imprevistos e que ainda hoje não sei explicar, que não seja pela insistência de um grande amigo dominicano, Frei José João, ensinaram-me ainda mais um mundo todo. A função dos metais, do sopro e dos grandes bordões graves do que é talvez o instrumento musical mais poderoso de todos.
Mas mais importante não é tocar, é saber ouvir. Aprender a ouvir, percebendo o que está a acontecer à nossa volta. A música aprende-se. O vinho é exactamente a mesma coisa, também se aprende a apreciar. Música e vinho são ambos assunto de aperfeiçoamento para uma vida inteira. E não há melhor forma de o fazer do que praticando.

domingo, 2 de outubro de 2016

É fácil trocar as palavras

É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.

(F. Pessoa)

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Descoberta(s)

"Vejo o pedreiro à chuva a abrir aquedutos para o coração
Vejo o pastor a alinhar orifícios na cana do junco
Vejo os gestos do mudo dispondo o silêncio."
(DF-273)

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

You go to my head

Billie Holiday

You go to my head
You linger like a haunting refrain
And I find you spinning round
In my brain
Like the bubbles in a glass of champagne
You go to my head

Like a sip of sparkling burgundy brew
And I find the very mention of you
Like the kicker in a julep or two
The thrill of the thought
That you might give a thought
To my plea, casts a spell over me

Still I say to myself
Get ahold of yourself
Can't you see that it never can be
You go to my head with a smile
That makes my temperature rise
Like a summer with a thousand Julys
You intoxicate my soul with your eyes
Though I'm certain that this heart of mine
Hasn't a ghost of a chance
In this crazy romance
You go to my head, you go to my head

Though I'm certain that this heart of mine
Hasn't a ghost of a chance
In this crazy romance
You go to my head, you go to my head

domingo, 4 de setembro de 2016

MF27. Lucia Moholy, 1894-1989 (antiga Checoslováquia)

A viragem do século, a revolução da fotografia, as duas guerras mundiais, tudo juntou e ao mesmo tempo separou tudo de todos, e uns dos outros. Saiu da sua terra natal para acompanhar o seu marido que foi leccionar para a Bauhaus. A segunda grande guerra foi um momento de exílio, mas separados um do outro, marido e mulher. Lucia Moholy fez um trabalho gigantesco nos livros que publicou, de história e retrospectiva fotográfica, numa leitura mundial. Ainda hoje são obras incontornáveis para o estudo da arte. Reformou-se e foi viver para a Suíça, onde veio a morrer. A foto que publico é bela e é o retrato de Otti Berger

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Já não sou.

Ainda não chegou o meu tempo.
O meu tempo há-de chegar.
O meu tempo já passou.
Já não chego.
Jà não sou.

sábado, 6 de agosto de 2016

MF26. Jill Greenberg, 1967- (EUA)

Se há fotógrafos cultores da realidade intocada, do objecto como ele é, também os há como esta artista, que se especializou em provocar efeitos até nos seus modelos, desde sofrimento a privação propositada em crianças. São bem conhecidos os seus retratos de crianças a chorar ou em desespero. Hoje em dia ensina-se em fotografia o “efeito Greenberg”, como técnica de pós-produção, ou photoshop - de que é pioneira, desde 1990, quando foi lançado no mercado -, para obter o resultado plástico que a define. No entanto, como ela própria de resto afirma, há um trabalho intenso e aturado de estúdio e iluminação primeiro; nem tudo é efeitos especiais.

sábado, 30 de julho de 2016

Sobre L’Annonce faite a Marie, de Paul Claudel

Violaine é filha de um lavrador abastado e despede-se com um beijo de um hóspede leproso no momento da partida, contraindo a doença. É vista no acto pela sua irmã Mara. Nesse mesmo dia, o pai de ambas anuncia que parte para Jerusalém e que quer que Violaine se case com Jacques, vizinho tratado por ele como um filho. Só que Mara está apaixonada por Jacques e vai fazer tudo para destruir o noivado. Então vai contar o episódio do beijo a Jacques, semeando-lhe a dúvida dentro. Ele confronta Violaine, que confirma tudo, após o que é expulsa de casa e entregue a uma leprosaria. Jacques deixa-se tomar pelo horror da doença e opta pelo caminho mais curto. Mara fica com o caminho para Jacques desimpedido, como ela queria. Passados sete anos, Mara vai visitar a irmã, que à reclusão entretanto juntou a cegueira. O impossível acontece quando pela visita de Mara Violaine fica curada da lepra e volta a ver. Em vez de ser uma boa notícia para a irmã, contudo, multiplica-se o ódio e o ciúme. O milagre passa-lhe totalmente ao lado.

Eu gosto muito desta pequena peça de teatro de Paul Claudel pelas implicações a um tempo humanas e sagradas que tem. A frase que mais perto do fim cabe a Violaine, “perdoem-me se fui feliz” é avassaladora. A cobiça, inveja e ciúme de uma irmã que não se importou de abandonar e prejudicar a sua própria irmã acaba por se transformar na força brutal da cura e do amor.

Somos governados pela inveja, somos capazes do pior.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

MF25. Anne Brigman, 1869-1950 (EUA)

Estudou e dedicou-se à pintura numa primeira fase da sua vida artística. A partir de 1902 entregou-se à fotografia com tal fervor e resultados que Stieglitz a convidou desde logo a integrar o famoso movimento da Photo-Secession, o que veio a consumar-se em 1906. O nu feminino deu-lhe fama, mas a realização verdadeira alcançou-a na natureza, particularmente nas terras ainda inóspitas e pouco visitadas de Sierra Nevada. Câmara de grande formato, tripé pesado às costas e roupa para muitos dias, eram frequentes as suas saídas. Há muito mistério em todas as imagens da artista, a maioria em torno da simbólica pagã.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

MF24. Ruth Bernhard, 1905-2006 (D)

Nasceu em Berlim e com 22 anos apenas interrompeu os estudos de Belas Artes, para se mudar para Nova Iorque. O contacto com a fotografia fê-la decidir enveredar por uma nova carreira, conhecendo e trabalhando com alguns dos melhores fotógrafos de então. Foi o que aconteceu com Edward Weston, com quem aprendeu muito acerca da fotografia culta. Em 1953 foi para a Califórnia e trabalhou ao lado de figuras como Ansel Adams e Imogen Cunningham. Os nus de Ruth Bernard ainda hoje são dos mais escultóricos e belos que a fotografia produziu. Esta imagem “Classic Torso”, de 1962 mostra bem a sua atitude estética.

terça-feira, 19 de julho de 2016

MF23. Ellen Auerbach, 1906-2004 (D)

Judia de nascimento (Alemanha), emigrou para a Palestina em 1933, onde começou a trabalhar fora de portas, ao mesmo tempo que descobriu a fotografia infantil. Esta fotografia marca um pouco a viragem para o mundo exterior, foi tirada em 1934, e mostra um cenário relativamente vulgar na praia de Tel Aviv, passagem de camelos observado por um miúdo. Mais tarde na sua vida fundou o seu Estúdio de Fotografia de Crianças, projecto que tratou com carinho até à morte, nos EUA, quase com cem anos.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Alma e pele.


Tocar piano é difícil, mas esta imagem é simbólica. Quando as coisas estão a correr bem, a musa aconchega-se e adormece. Nada tem de ofensivo, nem poderia ter.

domingo, 17 de julho de 2016

MF22. Louise Dahl-Wolfe, 1895-1989 (EUA)

Nasceu em Alameda, Califórnia e estudou na escola San Francisco Institute of Art. Estava a trabalhar como pintora de sinalização quando em 1921 descobriu as fotografias de Anne Brigman, californiana como Louise e pictorialista ligada ao famoso Stieglitz Circle de Nova Iorque. Ficou qualquer coisa dentro dela, mas foi só cerca de 10 anos mais tarde que fez as suas primeiras experiências fotográficas. Publicou a primeira fotografia em 1933, “Tennessee Mountain Woman”, na Vanity Fair e mudou-se para Nova Iorque, onde abriu o estúdio que viria a manter até 1960. O seu nome marca a história da fotografia de moda a cores, sobretudo pela sua incrível genialidade no processamento fotográfico, como está bem patente nesta imagem, a minha favorita.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

A casa que se for verdade não é credível

Na pequenina sala de dentro, aconchegada ao fogo da cozinha e ao mesmo tempo antecâmara anecóica do espaço de todos, está um livro, deixado da véspera que queimou 30 cigarros e cigarrilhas. Livro de muitos usos, uso de muitos anos. Duas pequenas poltronas, almofadas no chão, tudo desordenado na forma leitosa. Como se trazidas para ali por riacho tranquilo e seguro. Folhas, muitas folhas, com anotações, desenhos e pequenas paródias gráficas, aparentemente soltas mas no entanto numeradas, portanto ordenadas, sim, houve conversa solta, partilha, toques, lê-me o que estás a ler, olha o desenho do que disseste, então vou ler-te outro parágrafo, vou imaginar que não sei nada de ti, e ler-te tudo o que te possa de novo falar de mim. Horas soltas, fio espiral latente, corda rectilínea sem fim. Metal fusco sem ferrugem, sempre a contar sem cessar, certo, rigoroso, matemático. Não importa o que está no livro, não importa que livro é, a alvorada depressa conduzirá à manhã que o vai recolocar no seu sítio ou substituí-lo por outro, ou ainda tornar a pô-lo na mesma mesinha sensível, onde tudo começa e acaba entre eles, nos dias andados e corridos, e onde o ruído das crianças é ele próprio tempo e lugar do acontecimento daquele amor. O jardim lá fora nunca está sem folhas e peças cuidadosamente esquecidas, pequenas poças de água, ou sinais delas, líquida, é toda líquida a relação entre as duas almas encaixadas hermeticamente. Sem jardim, seria impossível, é nele que estão todas as arcadas das suas existências, todas elas portais magníficos do mar que existe por debaixo de toda a casa, sintonia perfeita, segredo místico e mistério inesgotável. Salinha e mar, e depois o andar dela sem peso, a insistência em voar e o importante é para ele que ela voe. É linda quando voa, pensa ele, sempre que a vê ou sente passar. A voz dela é igual ao seu voo, porque é igualmente imperfeita. É madeira exótica envernizada com capricho, corda dedilhada e ressoada, no oco de um violoncelo e no espaço do coração dele. Cada palavra dita por ela é uma mensagem, cada frase o troço do mesmo riacho que distribui as almofadas na salinha deles, e ouvir seja o que for que lhe apeteça dizer numa tarde inteira, é o próprio mar. Ele, náufrago voluntário naquele movimento periódico e harmónico que é tudo o que ela diz, constrói os seus textos, faz crescer os seus mundos e ama-a acima do que ambos são. E no entanto o amor sempre partiu dela. Foi ela que lhe ensinou que no amor, tal como em tudo naquela casa, entrega-se o que se tem. Depois vem sempre mais. Ele descobriu-a, ela amou-o muito. A casa cresceu com a recíproca. Ele amou-a intensamente, e ela não parou nunca de o descobrir.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

MF21. Marion Post Wolcott, 1910-1990 (EUA)

Filha de um médico conservador, e de uma mãe progressista, nos anos 30, na sequência da morte do seu pai, mudou-se para Paris e depois foi estudar psicologia em Viena. A ascensão do nazismo determinou o regresso aos EUA, para dar aulas e foi com os seus alunos que começou a fotografar profissionalmente. Depois seguiu-se uma vida atribulada, com fome, falta de trabalho e de dinheiro a tornar-lhe tudo muito difícil. A II Grande Guerra, especialmente na variante sociológica, teve uma grande influência em todo o seu longo e profícuo percurso como fotorrepórter.

domingo, 12 de junho de 2016

Deuses andaram outrora... (Holderlin)


Deuses andaram outrora entre os homens, as Musas magníficas
E o jovem Apolo, sarando, inspirando, como tu;
E tu és para mim como eles, como se um dos Venturosos
Me tivesse mandado pra a Vida: se eu ando, anda comigo
A imagem da minha Heroína, quando sofro e crio, com amor
Até à morte; pois isto foi que aprendi dela e dela tenho.

Vivamos, pois, ó tu com quem eu sofro, tu com quem
Íntima - e crente - e fielmente luto por tempo mais belo.
Pois nós somos! E se em anos vindouros ainda soubessem
De nós ambos, quando outra vez o Génio valer,
Diriam: «Estes solitários criaram pra si em amor,
Só sabido dos Deuses, o seu mais secreto mundo.
Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»

Temos de ser pobres dos que amamos.

Sobretudo mantê-los livres permanecendo.

Permaneço.

MF20. Jessie Tarbox Beals, 1870-1942 (CAN)

Foi a primeira mulher fotojornalista do Canadá, começou em 1902 nos jornais Buffalo Inquirer e The Courier. Mudou-se com o marido para Nova Iorque, onde foi forçada a abrir um estúdio para conseguir sobreviver. Tinha uma vontade indómita de conhecer o mundo e produzir notícias acompanhadas das fotografias mais informativas e directas de que fosse capaz. Teve uma filha em 1911, cuja doença provocou o afastamento do pai, o que a marcou de forma profundamente negativa. Acabaram por se divorciar em 1924, o que libertou Jessie e a filha, mudando-se para a Califórnia, onde o cinema estava ao rubro e as estrelas queriam ser fotografadas e famosas. Houve, contudo, a grande crise financeira logo a seguir. A vida nunca lhe mostrou um lugar brilhante e tranquilo para viver, a luta e a tenacidade são as suas grandes marcas.

Triunfo da estatística

Faz hoje entre 5 e 6 anos mais ou menos que aconteceu qualquer coisa de extraordinário na minha vida de que não me lembro porque devia estar a pensar fixamente nalguma coisa sem sentido. São memórias fortes como esta que nos fazem sentir acordados. Vontade de dormir.

sábado, 11 de junho de 2016

MF19. Ruth Orkin, 1921-1985 (EUA)

Fotojornalista e realizadora de cinema, filha única de uma actriz de cinema mudo, e um fabricante de barcos de brinquedo. Fez aos 17 anos uma viagem gigante de bicicleta, através dos EUA, entre Los Angeles e Nova Iorque, em que fotografou muito. Pode ter nascido aí a sua carreira brilhante de fotojornalista. Mas aos 22 anos ainda tinha de trabalhar como fotógrafa num night-club, e durante o dia fotografar bebés, para conseguir dinheiro para a sua primeira máquina fotográfica. Trabalhou como repórter para todas as grandes revistas norteamericanas e por isso conheceu diversas pessoas famosas, com quem estabeleceu sempre relações fortes. O seu trabalho mais genial, para mim, foi “American Girl in Italy”, fotorreportagem integrada na série “Don’t be afraid to travel alone”, sobre mulheres a viajar sozinhas pela Europa no pós-guerra. Esta foto diz quase tudo e é linda.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

MF18. Graciela Iturbide, 1942- (MEX)

Mais uma fotógrafa que começou a sua actividade nas artes visuais no cinema. Fortemente influenciada por Manuel Álvarez Bravo, cedo se virou para a fotografia. Os temas sociais, especialmente os que versam sobre a família e a realidade campesina do México, sua terra natal, encontram particular eco no talento artista. Interessam-lhe, de certa forma, um certo grotesco e as artes cénicas improvisadas. É autora de algumas das mais belas fotografias de costumes populares, em termos absolutos, incluindo casamentos, funerais e assuntos religiosos.

terça-feira, 31 de maio de 2016

MF17. Eve Arnold, 1912-2012 (EUA)

Judia de nascimento, nome de solteira Eve Cohen, filha de pais russos radicados nos EUA, Eve Arnold iniciou-se na fotografia com o maior art director de todos os tempos, Alexey Brodovitch, o gigante por detrás da Hapers Bazaar. Foi retratista especial, intimista, e escolheu temas que a acompanharam por toda a sua longa vida. Mais de metade foi ao serviço da agência Magnum, ao lado dos principais foto-reporters. Será sempre notável a emoção e o sentimento inspirados na simples visualização de uma fotografia sua. Continua hoje a ser exemplar para quem estuda e pratica fotografia culta.

domingo, 29 de maio de 2016

MF16. Leni Riefenstahl, 1902-2003 (Alemanha)

Viveu 101 fascinantes anos e fez uma trajectória de vida incrivelmente variada. Nasceu em Berlim no início do séc. XX no seio de uma família industrial bem sucedida, e no centro nevrálgico de praticamente tudo. Politicamente, fez “jogo perigoso”, ao manter-se amiga próxima do próprio Hitler, a ponto de ser levada a julgamento no fim da II Grande Guerra. Foi ilibada de todos os casos em que se sentou no banco dos réus. Esteta iconoclasta, distinguiu-se particularmente como cineasta, mais do que fotógrafa. Mas foi também bailarina e escritora, com grande brilho em tudo o que fez. À medida que o tempo vai passando, percebe-se a sua independência ideológica e o compromisso verdadeiramente artístico por que pautou a sua vida, contra tudo e todos.

domingo, 15 de maio de 2016

Elegia rápida

Como num tempo por que ninguém deu,
Um par de segundos que o tempo parou,
E os olhos e as mãos e o brilho da pele
Ali quietos de tão mortos e nada era meu.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Os dois lados da nuvem.

Perdi o único espinho que tinha numa onda e agora não tenho como furar a nuvem. Vou ter de esperar pelo vento.

Somos gente.

Somos imparáveis, perfeitos em queda livre pelas ladeiras acima, risos, beijos de apneia, palavras sem nexo, asfixia. Somos gelo quebrado, estado líquido calor perto soprado. Somos lágrima abraço quente. Somos gente.
(PaT)

domingo, 24 de abril de 2016

MF15. Lee Miller, 1907-1977 (EUA)

Nasceu em Nova Iorque e foi um dos grandes ícones da beleza, como modelo. Foi violada quando tinha apenas sete anos, experiência traumatizante que dominou toda a sua existência, de experiência prolongada de gonorreia. Foi desde cedo surrealista e quando chegou a Paris, encontrou terreno favorável para a sua criatividade. Mudou duas vezes o nome de baptismo, primeiro de Elizabeth para Li-Li, depois para Lee. Conheceu Man Ray em 1929, e logo se fez sua discípula na fotografia de moda, actriz, e ao mesmo tempo modelo. Foi a fotógrafa principal da Vogue. Périplo longo de trabalho conceptual, reforçado pela II Grande Guerra e pelo pós-guerra. É muito difícil fixá-la numa categoria fotográfica apenas, mas fotojornalista é provavelmente o que melhor a define. Morreu em Inglaterra, com um longo currículo e percurso profissional notável.

domingo, 10 de abril de 2016

Mais forte que tudo.

"Mais forte do que tudo,
As cores todas do mundo.
O rio que corre por nós,
Fio lume chão e flores."
(MM)

terça-feira, 5 de abril de 2016

MF 14. Gertrude Kasebier, 1852-1934 (EUA)

Fundou com Alfred Stieglitz o movimento da “foto-secessão”, uma aposta clara de remar contra a corrente e renunciar ao pré-estabelecido, que na altura (1901) significava libertar a fotografia de praticamente todos os cânones e formas conhecidas. Começou por ser retratista, no seu estúdio de pintura, o que de certa forma se sente em todas as suas fotografias. Cuidado cénico e procura da expressão de cada pessoa, são talvez os aspectos mais fortes. Foto: "The White Family, 1913.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

MF13. Mary Ellen Mark, 1940-2015 (EUA)

Renunciou até ao fim à fotografia digital, dizia que “a fotografia tem de acontecer na câmara fotográfica, não no computador, pelo menos para mim”. Era de qualquer forma tolerante para com todos e aceitava todas as formas de expressão como válidas, desde que produzidas com intenção artística. Tinha pouco mais de 30 anos quando entrou para a Magnum e foi das poucas mulheres e consegui-lo. Deixa um legado de que ainda há muito por desbravar e uma linha estética imaculada, acessível a todo o aspirante a fotógrafo. As suas fotografias são verdadeira escola. Apanhar as pessoas nos seus ofícios e atitudes regulares e depois mostrá-las da forma como as viu, olhar para a sua obra é um regalo.

domingo, 3 de abril de 2016

Kintsukuroi

Só o amor é semelhante no esforço à palavra. Não se refugiem no desdém e abandono gratuito. Há reparações que parecem fáceis, mas são impossíveis. Sejam amorosos com quem vos ama.

MF12. Lisette Model, 1896-1942 (A)

Austríaca de nascimento, foi uma artista multifacetada que curiosamente começou pela música, tendo estudado piano com Arnold Schonberg. A pintura expressionista que se praticava no meio vienense entrou praticamente no seu código genético, mas foi a fotografia, já a viver em Paris, que se lhe apresentou como caminho e proposta de vida. É sua a afirmação: “nunca fotografes nada que não desperte em ti a paixão mais intensa”. A intensidade da vida na rua e também a moda em Nova Iorque ocuparam muito a fotógrafa. Esta imagem, da série “running legs” é de 1941, quando o mundo estava em guerra, mostra praticamente tudo.

segunda-feira, 28 de março de 2016

MF11. Tina Modotti, 1896-1942 (I)

Fotojornalista de alma e coração e ao mesmo tempo artista com obsessão pela perfeição. Robert Capa, fundador da Magnum, foi a sua principal inspiração no ofício difícil de “mostrar as coisas exactamente como elas são”. A sua obra é bem mais vasta, merece bem que se pesquise e conheça.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Procuro.

Procuro o lento cimo da transformação
Um som intenso. O vento na árvore fechada
A árvore parada que não vem ao meu encontro.
Chamo-a com assobios, convoco os pássaros
E amo a lente floração dos bandos.
Procuro o cimo de um voo, um planalto
Muito extenso. E amo tanto
A árvore que abre a flor em silêncio.

DF261.

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos.

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

DF245.4

domingo, 20 de março de 2016

MF10. Helen Levitt, 1913-2009 (EUA)

Os desenhos de giz das crianças de Nova Iorque, as crianças e as suas brincadeiras extremas. Reflexos de uma infância pouco emancipadora da mulher autodidata, que aprendeu a fotografar no estúdio onde muito nova se empregou. Veio a Leica e toda uma vida dedicada às ruas, ao instante e ao belo. Ponte interessante e profícua com Walker Evans.

sábado, 19 de março de 2016

MF9. Imogen Cunningham, 1883-1976 (EUA)

Fez a primeira exposição a solo em 1914, logo após lançar um apelo às mulheres no sentido de não se limitarem a querer ultrapassar os homens, mas antes a assumir o seu trabalho, a sua profissão e uma forma própria de ser. Foi precursora da fotografia de rua, brilhante no instantâneo, mas foi também retratista genial e grande nas fotos da natureza, especialmente flores.

quinta-feira, 17 de março de 2016

MF8. Sally Mann, 1951- (EUA)

Paisagens funestas de grande dimensão, a preto e branco, foi o ponto estável a que a fotógrafa chegou. Quando começou a fotografar, fazia ensaios de leitura de estados emocionais em arranjos espaciais diversos e os seus filhos eram frequentemente parte das fotografias. Ainda não percebi se são tristes as suas imagens, porque são, todas elas, belas.

MF7. Diane Arbus, 1923-1971 (EUA)

Muitas das suas fotos mostram aquilo que jamais alguém imaginou ver. Desde as aberrações humanas até ao fantástico, há uma espécie de conspiração com vida própria que pulsa nas imagens de Diane Arbus. “Fotografa os teus medos”, dizia. Teve uma influência muito grande em diversos fotojornalistas e artistas eclécticos como Cindy Sherman. Na imagem, a "criança-granada".

domingo, 13 de março de 2016

MF6. Annie Leibovitz, 1949- (EUA)

Disse um dia que gostava que fosse possível fotografar a grandiosidade da natureza, a emoção da terra, a energia viva do lugar. O seu trabalho testemunha o talento gigante da artista e a invulgar capacidade de evocar o belo nos trabalhos por contrato, mantendo uma espécie de zona secreta e inviolável acessível apenas por ela. O retrato de Twyla Tharp que tenho sempre presente na memória demonstra para mim a força do seu trabalho em estúdio, apesar de ser conhecida no retrato por outras imagens, bem mais difundidas. Hesito, mesmo assim, em considerá-la mais retratista que esteta. É capaz de uma relação íntima com o símbolo e em função dele de quase se reinventar, a ponto de mostrar o inteiramente novo qua acaba de descobrir. Quase faz dela uma fotorreporter. É assim que a vejo. Esta imagem é da cama da pintora naturista Georgia O’Keeffe - flores -, consta que Annie chorou ao olhar para os lençóis.

sábado, 12 de março de 2016

MF5. Julia Margaret Cameron, 1815-1879 (EUA)

Estabeleceu a fotografia como arte e numa altura em que o hype da fotografia era para a maioria o hiperrealismo, ela optou por imagens fora de foco, para trabalhar e mostrar emoções. Nesta imagem, a tristeza. Notável.

MF4. Margaret Bourke-White, 1904-1971 (EUA)

Foi a primeira mulher fotógrafa a voar num avião da força aérea norte-americana, e a primeira ocidental a conseguir fotografar a indústria soviética. Destemida e determinada, conseguiu que se lhe abrissem todas as portas. Nesta foto, uma fábrica de munições da antiga Checoslováquia.

MF3. Dorothea Lange, 1895-1965 (EUA)

As migrações, a maternidade, expressões extremas, retratadas de forma eterna.

MF2. Cindy Sherman, 1954- (EUA)

Utilização impressionante da cor e texturas. Tem ainda o recorde de valor de venda de uma fotografia em leilão. Foi com esta foto. Cerca de 4 milhões de USD.

MF1. Frances McLaughlin-Gill, 1919-2014 (EUA)

Morreu a 23 de Outubro - dia do ano importante para mim - e, se ainda hoje são muito poucas as fotógrafas de moda, quando aos 24 anos foi a primeiríssima a assinar um contrato com a Vogue, eram praticamente inexistentes. Renunciou ao modelo estático, cénico e “perfeito”, inaugurando um estilo mundano, alegre e directo com o seu trabalho. Ainda hoje permanece como exemplo da área, à escala mundial.

domingo, 6 de março de 2016

Si tú y yo, Teresa mía, nunca

Si tú y yo, Teresa mía, nunca
nos hubiéramos visto,
nos hubiéramos muerto sin saberlo:
no habríamos vivido.

Tu sabes que morirse, vida mía,
pero tienes sentido
de que vives en mí, y viva aguardas
que a ti torne yo vivo.

Por el amor supimos de la muerte;
por el amor supimos
que se muere; sabemos que se vive
cuando llega el morirnos.

Vivir es solamente, vida mía,
saber que se ha vivido,
es morirse a sabiendas dando gracias
a Dios de haber nacido.

Miguel de Unamuno

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Porquê, Umberto Eco?

Tenho pena quando vejo partir gigantes como Umberto Eco, mas mais pena ainda do tempo que ele desperdiçou nas muitas oposições que fez a Jorge Luís Borges. O Nome da Rosa está pejado da ironia mais grosseira ao génio sulamericano. Basta atentar no nome do velho cego que punha veneno nas páginas de alguns livros. Nunca entenderei, de infantil e primário que é.