domingo, 29 de janeiro de 2017

Males e muros

Nos atentados devastadores do 11/Set em Nova Iorque, lembro-me do alerta que a minha terapeuta da altura me fez, de que a violência do ataque impune em si era o menor dos males. Terrível mesmo era a nova forma de nas nossas vidas passar a ser possível para os que nos eram mais chegados planear paulatinamente a nossa destruição. E que isso passaria a dar-lhes prazer, mostrar ao mundo o mal que nos faziam. Achei um exagero mas a Magda acertou em cheio.
Hoje faço um raciocínio parecido, com mais um paralelo com os EUA. A nova forma de terrorismo pessoal vai ser encontrarmos muros onde antes encontrávamos abraços. Não há dor maior.
Tenho problemas com a palavra "amizade", assumidamente, porque no fundo sempre senti mas não sabia dizer como de um momento para o outro se pode renunciar. A partir de agora, vão-se construir muitos muros.
Todos temos amigos verdadeiros, que não têm de estar num painel de fotografias em exposição, mas no nosso coração. Mas todos também - eu pelo menos - temos pessoas que sem darmos conta levantam novos muros. De nada adianta gozar com o rapazinho que governa os EUA neste momento, a quem seguramente roubaram os brinquedos todos quando era pequeno. Temos é de garantir que não fazemos o mesmo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Se eu pudesse trincar a terra toda

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...

Alberto Caeiro

E vou lendo como páginas o meu ser

"(...)
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu."

Fernando Pessoa

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Soneto de Walter Benjamin

Vibra o passado em tudo o que palpita
qual dança em coração de bailarino
ao regressar já mudo o violino
e há nuvens sobre o bosque em que transita

À paz dos seres a morte em seu contínuo
crescer em ramos de coral incita
a bem da noite negra e infinita
ser um raro instrumento é seu destino:

O cetro dos eleitos que não cansam
o corpo que este tempo já não quebra
é como a cruz que os astros quando avançam

sobre o sul traçam por medida e regra
Os deuses têm-no em suas mãos cativo
risível é quem eles mandam vivo.

(Trad. Vasco Graça-Moura)

sábado, 14 de janeiro de 2017

O tempo das folhas persistentes

(...) "Que idade, tempo, o espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mim puderam tanto,
Que, posto que deixe o canto,
A causa dele deixasse." (...)

Camões, Babel e Sião

sábado, 7 de janeiro de 2017

Fiz figura de corpo presente

Fiz figura de corpo presente, que era
a única figura que eu sabia fazer.
O corpo estava presente, a alma não,
a alma tinha ido dar uma volta, a alma
tinha morrido. Não podia portanto
tê-la comigo de cada vez que era
preciso ficar, também não era preciso
falar, era só preciso ficar, por isso
não fazia mal. Sem alma o corpo
criava o tom de uma cor desapercebida.

Coisa visivelmente de outro tempo,
simbolista, renascentista, ou outra coisa
qualquer, tudo servia para me atirares
à cara que eu já não era deste tempo.
Embora por soalho e tecto sons de hoje
levantem tábuas no soalho, estalem
tectos. Esses sons, que são de ferro
e água, batem no sangue com descarada
arritmia, até que as pálpebras se fecham
e eu me lembro outra vez que sou
corpo. Sem alma. Mas abdicou a alma
de mim, abdiquei eu dela? Calma,
assim não vamos a lado nenhum.

A alma é sem dúvida um tema
muito interessante, mas eu não consigo
dar-me a quem não vê a guerra total
e persistente, o vazio controlado
pela ignorância, os crimes impunes,
a sombra cinzenta no futuro da humanidade,
a hipótese do grande estoiro final.
E insistes em falar-me da alma.
E de ajustes de contas, e do silêncio
quando as portas se fecham e ali
ficas, de mãos cruzadas sobre o peito
e com a merda de um sorriso arrogante
ainda a bailar nos lábios roxos.

Hélder Moura Pereira

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Morreu John Berger

John Berger morreu ontem, e eu hoje tenho quase só isto para dizer. (Felizmente as palavras são suas)

"O meu coração nasceu nu
envolto em canções de embalar.
Posteriormente, fez de
poemas as suas vestes.

Tal qual uma camisa
que carrego nas costas
a poesia tenho lido.

Então vivi por meio século
até que em silêncio nos conhecemos.

Da minha camisa sobre a cadeira
esta noite aprendi
quantos anos
de estudo aturado
eu esperei por ti."

domingo, 1 de janeiro de 2017

Da bondade da solidão

"Seja o canto de um candeeiro ou a voz da tempestade, seja o respirar da noite ou o gemido do mar que te rodeia – sempre desperta por trás de ti uma vasta melodia, tecida por mil vozes, na qual só aqui e ali há espaço para fazer um solo. Saber quando é a tua vez – eis o segredo da solidão.”

"A melodia das coisas", R.-M. Rilke