quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Carta a quem.

No jardim de todos os jardins, o encontro inesperado recupera anos de não ter afinal conversado com ninguém. Claro que os gestos mecânicos, os movimentos bruscos e curtos, a falta de jeito até encontrar o jeito certo de sentar. Depois o que fizemos, o que fomos, os nossos filhos, os romances, a música, as viagens. As nossas cronologias comparadas mostram evidências que nos divertem, pode tudo ter acontecido sem disso termos dado conta. As mortes que nos calharam. Ainda não saí daqui. Ainda não percebi porque nunca te conheci. Prometo.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Prisões

Eu sou prisioneiro do mar,
da mesa cadeira e teclado.
De vez em quando troco o teclado pela árvore
Mas não dura; a árvore é efémera
e é no vento do meu teclado que me pacifico.
É tudo insuportável à minha volta,
E eu náufrago sem jangada.
O mar não tem como me expelir.

sábado, 5 de agosto de 2017

A sombra sou eu

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

José de Almada Negreiros