quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Vida sem morte

Viver mas só mesmo se tiver de ser.

As folhas nas árvores os frutos maduros

A criança no baloiço.

O carro ao longe e o ruído com cheiro

O pó irritado cria e apaga o rasto

A nuvens que mudam.

O aparo que parte no papel

As muitas cartas de amor,

Escrevê-las quando está ao lado

E quando o fio corre por debaixo.

Cheiro a cinzas, canela e jasmim

E os figos três horas em natas,

A bóina com as marcas dos dedos

O chão sem peso

O tomilho-limão

E o leite-creme de alfazema.


O que é eterno já está.

Posso morrer.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Espelho

Remorso

de Jorge Luís Borges

Cometi o pior desses pecados
Que podem cometer-se. Não fui sendo
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, despiedados.

Plos meus pais fui gerado para o jogo
Arriscado e tão belo que é a vida,
Para a terra e a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida

Não foi sua vontade. A minha mente
Aplicou-se às simétricas porfias
Da arte, que entretece ninharias.

Valentia eu herdei. Não fui valente.
Não me abandona. Está sempre ao meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.

(Tradução de Fernando Pinto do Amaral)

domingo, 6 de setembro de 2020

Repúdio da solidão

A solidão profunda em que vivo há vinte anos é a prova de que existe afinal um deus que me ama e perscruta. Na verdade, a experiência do silêncio absoluto é vocativa e musical em mim. Confundi-a cedo demais com vocação.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Pax 3 - Paris

Uma espécie de retiro em três pisos, o Aux Trois Mailletz, na Rue Galande, Paris 5. Entra-se a horas decentes para jantar, sai-se a horas decentes para o pequeno-almoço. Bom gosto, boa comida, boa música. Não ia lá há muitos anos e no entanto deve ser o sítio em Paris que até hoje mais recomendei. E é o único sítio do mundo onde dancei em cima das mesas. Aliás, desfilei.

Pax 2 - Annecy

Depois de perceber que estava confirmado nos meus avanços modestos e solitários em direcção ao doutoramento, ratificados pelo grupo de raciocínio espácio-temporal em que tinha acabado de ser confirmado, fui entregar-me aos prazeres da mesa num restaurante ultra-clássico mas onde havia excelentes vinhos. Abri uma garrafa de Clerc-Millon 1986 e do resto não me lembro, só me lembro de que saí cerca das 6 da tarde e que o jantar de gala da conferência era daí a pouco mais de uma hora. Foi só o tempo de ir ao meu mau hotel tomar um banho, mudar de roupa e dirigir-me ao chateau onde ia acontecer o tal jantar de gala. Logo que cheguei, arrependi-me mil vezes de me ter inscrito para o jantar, mas enfim, esperava-me dois dias depois um período de fantasia em Montreux, onde na qualidade de jornalista especialista de Tecnologias de Informação, tinha um hotel de 5 estrelas à minha espera.
Conheci a Irene. Venezuelana, cientista como eu, sobrinha da Isabel Allende, mil histórias para me contar e eu a ela. Passámos por cima do jantar e de tudo, combinámos secretamente ir a Annecy na noite seguinte. E fomos. E ainda não sei se voltámos.

Pax 1 - Chambéry

A bienal de inteligência artificial de 93 encerrou a minha vida científica, com a validação de que precisava do meu trabalho de doutoramento. A minha euforia ao ouvir isso mesmo na reunião do meu grupo de interesse em relação aos resultados que tinha conseguido fez-me sentir nas nuvens e só tinha cabeça para sair da conferência e vaguear por Chambéry com a minha máquina ao pescoço. Entrei em prédios, casas, meti por ruelas e becos, fiz a viagem de celebração ali mesmo e aprendi a libertar-me de duas relações muito erradas em que estava. Voltei e volto sempre que posso, ali todo o percurso calcorreado é também percurso interior. Revisito-me, por isso.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Luz e âmago.


Vê-se melhor o âmago quando a luz o atravessa. No vinho e nas pessoas.

No vinho devemos aproximar-nos dos vinhos matizados e bem definidos. Nas pessoas devemos aproximar-nos apenas das que nos mostram a luz através delas.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Ser gaivota


Fotografei o céu sem olhar para ele,
Chovia no ínfimo templo marginal.
E a gaivota impermeável permanecia.
Não veio ver-me, nem fugiu.

O espaço marítimo fez-se nuvem dentro
E no meu peito nada para pescar.
Mas objectos mais vivos que o coração
E a alva ave perscrutava-os.

Uma esfera perfeita de madeira
Com música dentro, a pedra
Rolada do rio alvo como o pássaro.

As folhas de quercus palustris
E o rosário de penas. Leve.
Pela primeira vez sou importante.