sábado, 22 de outubro de 2016

Não te apaixones por mim.

Não te apaixones por mim.
Há dias em que estou triste sem razão e fico a olhar para o tecto com lágrimas a escorrer-me pela cara abaixo.

Não te apaixones por mim.
Nesses dias, não falo com ninguém. Afundo-me na cama e interrogo-me sobre como me transformei neste caos triste.

Não te apaixones por mim.
Vou ficar ligado a ti e vou chorar até adormecer se não me envias uma mensagem de boa noite antes de adormeceres e vou convencer-me de que te fartaste de mim.

Não te apaixones por mim.
Sou exagerado. Vou ficar dependente de ti. Preciso de atenção, muito mais do que os outros. Vou falar contigo por metáforas e vou fazer de ti uma metáfora. Vou escrever poemas sobre ti até tarde.

Não te apaixones por mim.
Acharia insuportável chegares a casa e encontrares-me no chão da casa de banho a tremer e a chorar, com sangue a sair dos meus pulsos. Ia achar insuportável a desilusão nos teus olhos.

Não te apaixones por mim.
Vou deixar sair para ti tudo o que sobra de mim, tudo o que é amor, até não ter mais nada para dar. Até ficar completamente vazio.

Não te apaixones por mim.
Tenho medo de a minha tristeza ser contagiosa.

Não te apaixones por mim.
Vou ouvir as tuas palavras doces na minha cabeça sempre que me quiser matar. E serão elas o único motivo para ficar.

Não te apaixones por mim.
Vais viver em pânico. Não vais ser capaz de me deixar sozinho porque sabes que se o fizeres, perco os motivos para viver.

Não te apaixones por mim.
Antes de te conhecer, ninguém me fez ficar. Agora és a minha razão.

Não te apaixones por mim.

Porque me vou apaixonar por ti.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Notas soltas para harmonização de vinhos e música.


Há pontes evidentes entre música e vinho e todas elas decorrem da característica intrinsecamente vibratória da música. Os aspectos harmónicos e inarmónicos da vibração ocorrem também dentro do vinho. Qualquer líquido ou sólido a transportam de forma imanente e única. A própria molécula elementar tem uma vibração latente entre os seus átomos que definem tanto o seu estado energético como o comportamento numa reacção química. Por outro lado, o estímulo da vibração induz nos líquidos alterações que são objecto de estudo e caracterização. O vinho é particularmente sensível ao estímulo vibratório. Uma cave de vinhos na qual queremos estagiar e manter os nossos vinhos por muitos e bons anos deve, por isso mesmo, ser imune à vibração e sobretudo não ter, ela própria, um ambiente demasiado vibratório. Os armários climatizados para vinhos que hoje se vendem e aos quais confiamos as nossas mais preciosas garrafas, garantem não só temperatura e humidade constantes, mas também ausência de vibração. Isto faz com que os vinhos evoluam tranquilamente, de acordo com os seus componentes e perfil, em vez de por estímulos exteriores.
Vinho é complexidade. Aromas, sabores, sensações, entrada de boca, meio de boca, fim de boca, retronasais, bouquet, são inúmeras as portas de entrada de um bom vinho. Podem, por isso, ser eles próprios estados de alma. E como sabemos que é verdade que um mesmo vinho há dias que nos apetece, contra outros em que não nos apetece nada. Um pouco como as relações entre as pessoas, que conhecem melhores e piores dias consoante os ânimos e os astros, apesar de as pessoas serem as mesmas (serão?...)
Eu tenho particular dificuldade em não pensar em que vinho me evoca a voz de alguém que acabo de conhecer. Reconheço no timbre, intensidade, aresta, rugosidade e flutuações da voz características que são quase directamente transponíveis, sem mais, para o ambiente conjunto de taninos e acidez de um vinho. Uma voz esganiçada é um vinho com taninos muito verdes sobre os quais cai uma acidez desequilibrada. Já uma voz de peito e doce, como é a voz de uma mãe, evoca taninos muito finos, com uma acidez escondida, quase imperceptível. A voz do pai, essa é normalmente “feita” de taninos redondos, maduros, suportando uma acidez maior, pelo ambiente também ele maior.
Os estudos musicais para que os meus pais me conduziram na infância e na juventude foram causa de dor e sofrimento, ligados ao sentimento geral de “não ser capaz” que só não experimentou quem nunca se dedicou a um instrumento. Passados alguns anos deram contudo numa fonte de grande prazer, partilhado com outros. A minha relação com o piano é bonita e cabe nela praticamente todo o meu mundo. Toco mal, mas tenho um gozo tremendo a tocar, e aproveito para pôr a conversa em dia com pessoas que não tenho mais ao pé de mim. Os cerca de 10 anos que dediquei ao órgão de tubos de S. Domingos, por motivos imprevistos e que ainda hoje não sei explicar, que não seja pela insistência de um grande amigo dominicano, Frei José João, ensinaram-me ainda mais um mundo todo. A função dos metais, do sopro e dos grandes bordões graves do que é talvez o instrumento musical mais poderoso de todos.
Mas mais importante não é tocar, é saber ouvir. Aprender a ouvir, percebendo o que está a acontecer à nossa volta. A música aprende-se. O vinho é exactamente a mesma coisa, também se aprende a apreciar. Música e vinho são ambos assunto de aperfeiçoamento para uma vida inteira. E não há melhor forma de o fazer do que praticando.

domingo, 2 de outubro de 2016

É fácil trocar as palavras

É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.

(F. Pessoa)