quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Notas soltas para harmonização de vinhos e música.


Há pontes evidentes entre música e vinho e todas elas decorrem da característica intrinsecamente vibratória da música. Os aspectos harmónicos e inarmónicos da vibração ocorrem também dentro do vinho. Qualquer líquido ou sólido a transportam de forma imanente e única. A própria molécula elementar tem uma vibração latente entre os seus átomos que definem tanto o seu estado energético como o comportamento numa reacção química. Por outro lado, o estímulo da vibração induz nos líquidos alterações que são objecto de estudo e caracterização. O vinho é particularmente sensível ao estímulo vibratório. Uma cave de vinhos na qual queremos estagiar e manter os nossos vinhos por muitos e bons anos deve, por isso mesmo, ser imune à vibração e sobretudo não ter, ela própria, um ambiente demasiado vibratório. Os armários climatizados para vinhos que hoje se vendem e aos quais confiamos as nossas mais preciosas garrafas, garantem não só temperatura e humidade constantes, mas também ausência de vibração. Isto faz com que os vinhos evoluam tranquilamente, de acordo com os seus componentes e perfil, em vez de por estímulos exteriores.
Vinho é complexidade. Aromas, sabores, sensações, entrada de boca, meio de boca, fim de boca, retronasais, bouquet, são inúmeras as portas de entrada de um bom vinho. Podem, por isso, ser eles próprios estados de alma. E como sabemos que é verdade que um mesmo vinho há dias que nos apetece, contra outros em que não nos apetece nada. Um pouco como as relações entre as pessoas, que conhecem melhores e piores dias consoante os ânimos e os astros, apesar de as pessoas serem as mesmas (serão?...)
Eu tenho particular dificuldade em não pensar em que vinho me evoca a voz de alguém que acabo de conhecer. Reconheço no timbre, intensidade, aresta, rugosidade e flutuações da voz características que são quase directamente transponíveis, sem mais, para o ambiente conjunto de taninos e acidez de um vinho. Uma voz esganiçada é um vinho com taninos muito verdes sobre os quais cai uma acidez desequilibrada. Já uma voz de peito e doce, como é a voz de uma mãe, evoca taninos muito finos, com uma acidez escondida, quase imperceptível. A voz do pai, essa é normalmente “feita” de taninos redondos, maduros, suportando uma acidez maior, pelo ambiente também ele maior.
Os estudos musicais para que os meus pais me conduziram na infância e na juventude foram causa de dor e sofrimento, ligados ao sentimento geral de “não ser capaz” que só não experimentou quem nunca se dedicou a um instrumento. Passados alguns anos deram contudo numa fonte de grande prazer, partilhado com outros. A minha relação com o piano é bonita e cabe nela praticamente todo o meu mundo. Toco mal, mas tenho um gozo tremendo a tocar, e aproveito para pôr a conversa em dia com pessoas que não tenho mais ao pé de mim. Os cerca de 10 anos que dediquei ao órgão de tubos de S. Domingos, por motivos imprevistos e que ainda hoje não sei explicar, que não seja pela insistência de um grande amigo dominicano, Frei José João, ensinaram-me ainda mais um mundo todo. A função dos metais, do sopro e dos grandes bordões graves do que é talvez o instrumento musical mais poderoso de todos.
Mas mais importante não é tocar, é saber ouvir. Aprender a ouvir, percebendo o que está a acontecer à nossa volta. A música aprende-se. O vinho é exactamente a mesma coisa, também se aprende a apreciar. Música e vinho são ambos assunto de aperfeiçoamento para uma vida inteira. E não há melhor forma de o fazer do que praticando.

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