quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Menina, chapéu de palha e mar



Ouve-se a história muitas vezes, tantas e com tantos protagonistas tão diferentes, e que no entanto desempenham o mesmo papel, que quando nos calha a nós já não a sentimos como história. É uma espécie de intercalar, pausa turbulenta no meio de coisas neutras, sempre neutras. Protagonismos fechados sobre si mesmos. Teatro sem circunstância nem plateia. Discurso sem interlocutores. Enlouquecer, é do que trata a história-estória, ou do que quer que se entenda pelo acto em si. Porque é preciso querer, fazer por isso, desejá-lo. E, depois, claro, é preciso ser eficaz. Conseguir. Conseguir contar uma história de loucura é, em sim mesmo, também uma loucura.
Lá de cima, do topo da falésia, a mancha temporariamente escura, depois mais clara e finalmente do mesmo tom que a restante areia, aquela que o mar não cobria na mesma investida, desenhava como que um semicírculo. Olhar para a mancha efémera, que logo era substituída por outra, divertia. Semelhança com a vida que se convencionou amorosa. Não há quem olhe para o mar numa praia que não pense fecundamente. Com um vestido branco e chapéu de palha, está uma menina junto à orla mais escura, sem lhe tocar. Os inevitáveis pequenos passos para trás e para a frente, para se manter na coroa virgem de mar. Os sorrisos, por vezes gargalhadas. As falésias têm destes milagres acústicos. Subitamente, sobe o vento, obrigando a menina a manter a sua mão direita sobre a cabeça, para que o chapéu não voe. O movimento, visto da falésia, passa a desenhar um circuito harmónico e oscilante, pequeno bloco cândido com uma alavanca fina que é o braço esquerdo da angélica criatura que insiste em insinuar-se. Vai e vem. Brinquedo elementar, diverte-se com o que faz.
A descida à praia é inevitável. Contra o vento que sopra agora forte, vindo do mar. A areia com os habituais obstáculos. Pequenas pedras, pedaços irregulares de madeira molhada que podem ser destroços de um barco antigo e ao mesmo tempo restos de uma caixa elementar que por ali alguém outrora deixou. O mar tem uma força avassaladora e de repente esta capacidade infinda de surpreender com coisas infantis. Depois as conchas, registos maníacos de um futuro que ele não sabe ler mas que o intrigam como se soubesse. Mais adiante e por toda a parte, papéis rasgados, bocados de livros, e uma revista estraçalhada, já perto demais da menina para conseguir decifrar as caras e letras que nela aparecem e onde acaba de ter a impressão de ter visto uma amiga sua de outrora.
Lágrimas. A menina tinha lágrimas no rosto enquanto sorria e soltava gargalhadas, com os olhos fixos nos pés, que continuavam o vaivém com o que o mar cobria e descobria. O mar pode ser perigoso, disse ela, mas é muito divertido. Dentro e fora, é quase igual, às vezes é bom deixar molhar os pés, respondeu ele. Não, não é preciso, é preciso é que eu o evite, estou aqui a marcar um ritmo que não é meu, é teu. Meu como. Teu, de sempre, e que se acaba em breve, passarás a outro. Sim, eu sinto isso, há muito tempo que me sinto outro, desde que me lembro de ser gente. Eu não sou boa a fazer isso, porque aprendi a não ter idade e não ser rigorosamente nada. Mas acompanho-te desde que apanhaste o teu primeiro grande susto ao entalar um dedo na corda de um brinquedo. Sozinho, sempre sozinho, eu quis sempre ver como eram os brinquedos por dentro e se depois de desmontados conseguia voltar a montá-los. Pois, disseram-te que ias ser bom nisso mas percebeste que não era esse o teu melhor. Não, quis-me entregar totalmente a todos. Às pessoas. A uma mulher. Silêncio. A impressão de ter chocado alguém sem razão aparente nem sensação de culpa. Pais que foram só porta de entrada neste mundo e que renunciaram a ser mais. Viuvez sem casamento. Dois filhos. Mais outros. Morte de um sem ser filho. Outro filho ainda. Finalmente, tremendamente feliz. Sim, eu lembro-me de uma mulher virtuosa me dizer isso, e de isso me impressionar. Como podes lembrar-te e não teres percebido como és. Aprendi que a felicidade e o amor são objectos perigosos na minha vida e que não os devo procurar, devo até renunciar. Sim, não deves procurar, mas deves aceitar, renunciar nunca, é proibido. Como pode alguém amar-me sem me conhecer. Como tu a amas a ela, desde que a viste. Sim, muito, mas aprendi a duvidar de tudo o que sinto e a ver no que sinto uma espécie de mal. O teu ritmo não é só teu, há sempre mais alguém. Forçar um ritmo ou pará-lo é intervir brutalmente numa vida. Vida que também já foi recém-nascida, bebé, criança que pode não se ter entalado na corda de um brinquedo, mas que é provável que se tenha picado num espinho, apanhado um choque eléctrico ou tivesse caído a correr num campo. Princípios frescos e verdes como os que estão na vida de toda a gente. Sim, e também deve ter ficado quieta muito tempo no silêncio como tu quando olhavas para as coisas a passar horas a fio. Para aprender. E na quietude, aprender talvez mas sobretudo estar quieta. Sonhos, festas, gargalhadas, e também choros soltos, gritos de revolta e pouco razoáveis. Abandonos, muitos abandonos, aproximações frustradas, linguagem que ninguém entendeu plenamente, mesmo aqueles que lhe disseram entender. Uma pessoa como tu, que sente as coisas como tu e vê como tu. Teres medo fez-te achar que os que encontras pelos teus muitos caminhos são esculturas que te conduzem a pouco mais que logro. Procurei muito e não vi muito mais. Acreditas no que vês e ouves agora. Sim, acredito. Então tenho muitas coisas para te contar. Vamos passear junto ao mar e explico-te.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

É urgente o amor

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

In Memoriam, Horacio Ferrer (1933-2014)

El Amor Secreto

Ay, el amor secreto, un cadencioso
levantar las solapas a los días,
el dolor de gritar con las encías
te amo, ¡te amo! y un dolor hermoso:

te he sepultado viva, en mí, por mía,
y aún con la ropa vuelta calabozo
desbrochamos la melancolía
y desnudas las almas, qué alborozo,

qué abrazo en alma pura que nos dimos
y adentro se abrazaron las aortas
con mimos perfumados como un ramo.

Si pudo ser o no, mi amor, qué importa,
qué importa si hemos muerto o si vivimos,
te amo, te amo, te amo, te amo, te amo.

1983

domingo, 14 de dezembro de 2014

Suspensão



Fora de mim, fora de nós, no espaço, no vago

A música dolente de uma valsa
Em mim, profundamente em mim
A música dolente do teu corpo
E em tudo, vivendo o momento de todas as coisas
A música da noite iluminada.
O ritmo do teu corpo no meu corpo...
O giro suave da valsa longínqua, da valsa suspensa...
Meu peito vivendo teu peito
Meus olhos bebendo teus olhos, bebendo teu rosto...
E a vontade de chorar que vinha de todas as coisas.
Vinicius de Moraes

domingo, 7 de dezembro de 2014

Quem serve quem, ninguém

Todos precisam mais do que eu, tirando aqueles que têm o que eu preciso. Assistem-me em total Silêncio, e eu já sou Nuvem quando estão quase a perceber o que fiz.

"Qualquer que seja o bom trabalho que voçê faça, está sujeito a encontrar problemas e obstáculos. Por isso é importante verificar a sua motivação. Seja verdadeiro e honesto: se aquilo que quer fazer fõr bom para os outros, será bom para si também.
A partir do momento em que você sabe que o seu objetivo pode ser alcançado, você deve tentar segui-lo até ao fim. Então, mesmo que você não consiga, não terá nenhum motivo de arrependimento."
Dalai Lama
5/12/2014

Palavra que silêncio e nuvem.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Permanecer assim, uma.


Brincavas, provocavas, dançavas como ninguém e sorrias sempre. Vias para dentro de mim, e gostavas do que vias.


ROCKING BACK INSIDE MY HEART

Tell your heart that I'm the one
Tell your heart it's me

I want you
Rockin' back inside my heart
I want you
Rockin' back inside my heart
Rockin' back inside my heart

Shadow in my house
The man he has brown eyes
She'll never go to Hollywood
Love moves me

I want you
Rockin' back inside my heart
I want you
Rockin' back inside my heart
Rockin' back inside my heart

Tell your heart, you make me cry
Tell your heart, don't let me die

I want you
Rockin' back inside my heart
I want you
Rockin' back inside my heart
Rockin' back inside my heart

Shadow in my house
The man he has brown eyes
She'll never go to Hollywood
Love moves me

I want you
Rockin' back inside my heart
I want you
Rockin' back inside my heart
Rockin' back inside my heart

She'll never go to Hollywood

Do you remember our picnic lunch?
We both went up to the lake
And then we walked among the pines
The birds sang out a song for us

We had a fire when we came back
And your smile was beautiful
You touched my cheek and you kissed me
At night we went for a stroll

The wind blew our hair
The fire made us warm
The wind blew the waves
Out on the lake

We heard the owl in a nearby tree
I thought our love would last forever

David Lynch

Infinitamente grande


Estou a escrever-te no momento em que a noite e o dia se encontram e quando me instalo na nuvem-tunel. A sugestão súbita de um possível quadro de Rothko faz-me pensar na intimidade que ele reclamava para a observação das suas telas grandes.

Silêncio total. Palavra que infinitamente.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Chorar por amor


Tristezas, agruras, desilusões, abandonos, mortes, alegrias, festejos, todos têm direito às suas lágrimas. Mas só as vertidas por amor são verdadeiras.

Impossível não estarmos solidários com quem viu lentamente partir o seu companheiro, tão devagar que talvez da dor continuada dos dias de anos dói abruptamente. Palavra que lágrimas.

Pausa com Santo Agostinho

"É tão grande a força do amor que transforma o amante na imagem do amado."

Ama-se no outro o que nele se transforma.

Revoada




Soltou-se tudo. Chão céu cabelo nuvem.