terça-feira, 30 de junho de 2015

Complicação, de Mário Dionísio

 

As ondas indo, as ondas vindo — as ondas indo e vindo sem
parar um momento. 
As horas atrás das horas, por mais iguais sempre outras. 
E ter de subir a encosta para a poder descer. 
E ter de vencer o vento. 
E ter de lutar.
Um obstáculo para cada novo passo depois de cada passo. 
As complicações, os atritos para as coisas mais simples. 
E o fim sempre longe, mais longe, eternamente longe.

Ah mas antes isso!

Ainda bem que o mar não cessa de ir e vir constantemente. 
Ainda bem que tudo é infinitamente difícil. 
Ainda bem que temos de escalar montanhas e que elas vão
sendo cada vez mais altas. Ainda bem que o vento nos oferece resistência 
e o fim é infinito.

Ainda bem. 
Antes isso.
50 000 vezes isso à igualdade fútil da planície.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Sei os teus seios

(Alexandre O'Neill)

Sei os teus seios. 
Sei-os de cor. 

Para a frente, para cima, 
Despontam, alegres, os teus seios. 

Vitoriosos já, 
Mas não ainda triunfais. 

Quem comparou os seios que são teus 
(Banal imagem) a colinas! 

Com donaire avançam os teus seios, 
Ó minha embarcação! 

Porque não há 
Padarias que em vez de pão nos dêem seios 
Logo p'la manhã? 

Quantas vezes 
Interrogaste, ao espelho, os seios? 

Tão tolos os teus seios! Toda a noite 
Com inveja um do outro, toda a santa 
Noite! 

Quantos seios ficaram por amar? 

Seios pasmados, seios lorpas, seios 
Como barrigas de glutões! 

Seios decrépitos e no entanto belos 
Como o que já viveu e fez viver! 

Seios inacessíveis e tão altos 
Como um orgulho que há-de rebentar 
Em deseperadas, quarentonas lágrimas... 

Seios fortes como os da Liberdade 
-Delacroix-guiando o Povo. 

Seios que vão à escola p'ra de lá saírem 
Direitinhos p'ra casa... 

Seios que deram o bom leite da vida 
A vorazes filhos alheios! 

Diz-se rijo dum seio que, vencido, 
Acaba por vencer... 

O amor excessivo dum poeta: 
"E hei-de mandar fazer um almanaque 
da pele encadernado do teu seio"
(Gomes Leal)

Retirar-me para uns seios que me esperam 
Há tantos anos, fielmente, na província! 

Arrulho de pequenos seios 
No peitoril de uma janela 
Aberta sobre a vida. 

Botas, botirrafas 
Pisando tudo, até os seios 
Em que o amor se exalta e robustece! 

Seios adivinhados, entrevistos, 
Jamais possuídos, sempre desejados! 

"Oculta, pois, oculta esses objectos 
Altares onde fazem sacrifícios 
Quantos os vêem com olhos indiscretos" 
(Abade de Jazente)

Raimundo Lúlio, a mulher casada 
Que cortejaste, que perseguiste
Até entrares, a cavalo, p'la igreja 
Onde fora rezar, 
Mudou-te a vida quando te mostrou 
("É isto que amas?") 
De repente a podridão do seio. 

Raparigas dos limões a oferecerem 
Fruta mais atrevida: inesperados seios... 

Uma roda de velhos seios despeitados, 
Rabujando, 
A pretexto de chá... 

Engolfo-me num seio até perder 
Memória de quem sou... 

Quantos seios devorou a guerra, quantos, 
Depressa ou devagar, roubou à vida, 
À alegria, ao amor e às gulosas 
Bocas dos miúdos! 

Pouso a cabeça no teu seio 
E nenhum desejo me estremece a carne. 

Vejo os teus seios, absortos 
Sobre um pequeno ser

domingo, 21 de junho de 2015

Kundry

Kundry 1



Kundry, ambivalente mas chave no conhecimento de Parsifal de si próprio. Dois senhores: Gurnemanz (Graal; purificação) e Klingsor (Mal; magia negra). Transporta em si num todo indefinível esses grandes blocos dos fundamentos da existência humana.

Toquei mais vezes a abertura de Parsifal como marcha inicial em casamentos do que as vezeiras marchas nupciais de Mendelson e Wagner (Lohengrin). Há magia em todos os compassos e é sempre redentor o percurso melódico e contraponto das várias vozes. Kundry está sempre presente e sempre, por puxar tanto pela existência dos que interpela, dos que ama, leva quase ao mito da transformação em si próprio, à maneira de Zaratustra.

Falo muitas vezes com Kundry. Gosto de falar com ela. Gosto de me deixar ser dela.


Kundry 2





Sedutora nos jardins de Klingsor. Mas também Graal nos domínios de Gurnemanz. Ao seduzir Parsifal, vai sucumbir nos seus braços e revelar-lhe os primeiros instantes, cantando-lhe ao ouvido o que a sua Mãe cantava enquanto o amamentava. Parsifal descobre a sua identidade e o amor. Ao conduzi-lo a Gurnemanz, Kundry proporciona a Parsifal o mais brutal acontecimento: a transformação. "Aqui o tempo e o espaço tornam-se um só". Maravilhosa Kundry. Estás exausta, ninfa.


Kundry 3



Kundry, exausta. É preciso esvaziar-se completamente. Parsifal nos seus braços esgotado em sono profundo. Ela mais. Porquê?


Kundry 4


Kundry deixou de sentir. Perscruta-se num qualquer espelho. Ri-se dos tolos voluntários que julgam perceber.


Kundry 5


És mortal e morta, Kundry. Afinal és escrava.


Kundry 6

Kundry, minha força e vigor. Diz-me tudo.



Kundry 7

Kundry mulher peito beleza. Magma partilhado. Fusão.






Kundry 8

Kundry esclarecimento.





Sim, insubstituíveis

Alguém que nos conhece bem, incluindo as falhas e os defeitos graves, e mesmo assim continua a achar-nos fantásticos e a admirar-nos; Sendo alguém de quem nós conhecemos as falhas e os defeitos graves e continuamos a achar uma pessoa fantástica, tem de estar para sempre na nossa vida e nós na dela. É amor.

sábado, 6 de junho de 2015

Luz madressilva



Os sentimentos não têm medida,

Nem, de uns para outros, comparação.

Vai já na curva que é a descida

A cavalgada meu coração.