quinta-feira, 23 de junho de 2016

A casa que se for verdade não é credível

Na pequenina sala de dentro, aconchegada ao fogo da cozinha e ao mesmo tempo antecâmara anecóica do espaço de todos, está um livro, deixado da véspera que queimou 30 cigarros e cigarrilhas. Livro de muitos usos, uso de muitos anos. Duas pequenas poltronas, almofadas no chão, tudo desordenado na forma leitosa. Como se trazidas para ali por riacho tranquilo e seguro. Folhas, muitas folhas, com anotações, desenhos e pequenas paródias gráficas, aparentemente soltas mas no entanto numeradas, portanto ordenadas, sim, houve conversa solta, partilha, toques, lê-me o que estás a ler, olha o desenho do que disseste, então vou ler-te outro parágrafo, vou imaginar que não sei nada de ti, e ler-te tudo o que te possa de novo falar de mim. Horas soltas, fio espiral latente, corda rectilínea sem fim. Metal fusco sem ferrugem, sempre a contar sem cessar, certo, rigoroso, matemático. Não importa o que está no livro, não importa que livro é, a alvorada depressa conduzirá à manhã que o vai recolocar no seu sítio ou substituí-lo por outro, ou ainda tornar a pô-lo na mesma mesinha sensível, onde tudo começa e acaba entre eles, nos dias andados e corridos, e onde o ruído das crianças é ele próprio tempo e lugar do acontecimento daquele amor. O jardim lá fora nunca está sem folhas e peças cuidadosamente esquecidas, pequenas poças de água, ou sinais delas, líquida, é toda líquida a relação entre as duas almas encaixadas hermeticamente. Sem jardim, seria impossível, é nele que estão todas as arcadas das suas existências, todas elas portais magníficos do mar que existe por debaixo de toda a casa, sintonia perfeita, segredo místico e mistério inesgotável. Salinha e mar, e depois o andar dela sem peso, a insistência em voar e o importante é para ele que ela voe. É linda quando voa, pensa ele, sempre que a vê ou sente passar. A voz dela é igual ao seu voo, porque é igualmente imperfeita. É madeira exótica envernizada com capricho, corda dedilhada e ressoada, no oco de um violoncelo e no espaço do coração dele. Cada palavra dita por ela é uma mensagem, cada frase o troço do mesmo riacho que distribui as almofadas na salinha deles, e ouvir seja o que for que lhe apeteça dizer numa tarde inteira, é o próprio mar. Ele, náufrago voluntário naquele movimento periódico e harmónico que é tudo o que ela diz, constrói os seus textos, faz crescer os seus mundos e ama-a acima do que ambos são. E no entanto o amor sempre partiu dela. Foi ela que lhe ensinou que no amor, tal como em tudo naquela casa, entrega-se o que se tem. Depois vem sempre mais. Ele descobriu-a, ela amou-o muito. A casa cresceu com a recíproca. Ele amou-a intensamente, e ela não parou nunca de o descobrir.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

MF21. Marion Post Wolcott, 1910-1990 (EUA)

Filha de um médico conservador, e de uma mãe progressista, nos anos 30, na sequência da morte do seu pai, mudou-se para Paris e depois foi estudar psicologia em Viena. A ascensão do nazismo determinou o regresso aos EUA, para dar aulas e foi com os seus alunos que começou a fotografar profissionalmente. Depois seguiu-se uma vida atribulada, com fome, falta de trabalho e de dinheiro a tornar-lhe tudo muito difícil. A II Grande Guerra, especialmente na variante sociológica, teve uma grande influência em todo o seu longo e profícuo percurso como fotorrepórter.

domingo, 12 de junho de 2016

Deuses andaram outrora... (Holderlin)


Deuses andaram outrora entre os homens, as Musas magníficas
E o jovem Apolo, sarando, inspirando, como tu;
E tu és para mim como eles, como se um dos Venturosos
Me tivesse mandado pra a Vida: se eu ando, anda comigo
A imagem da minha Heroína, quando sofro e crio, com amor
Até à morte; pois isto foi que aprendi dela e dela tenho.

Vivamos, pois, ó tu com quem eu sofro, tu com quem
Íntima - e crente - e fielmente luto por tempo mais belo.
Pois nós somos! E se em anos vindouros ainda soubessem
De nós ambos, quando outra vez o Génio valer,
Diriam: «Estes solitários criaram pra si em amor,
Só sabido dos Deuses, o seu mais secreto mundo.
Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»

Temos de ser pobres dos que amamos.

Sobretudo mantê-los livres permanecendo.

Permaneço.

MF20. Jessie Tarbox Beals, 1870-1942 (CAN)

Foi a primeira mulher fotojornalista do Canadá, começou em 1902 nos jornais Buffalo Inquirer e The Courier. Mudou-se com o marido para Nova Iorque, onde foi forçada a abrir um estúdio para conseguir sobreviver. Tinha uma vontade indómita de conhecer o mundo e produzir notícias acompanhadas das fotografias mais informativas e directas de que fosse capaz. Teve uma filha em 1911, cuja doença provocou o afastamento do pai, o que a marcou de forma profundamente negativa. Acabaram por se divorciar em 1924, o que libertou Jessie e a filha, mudando-se para a Califórnia, onde o cinema estava ao rubro e as estrelas queriam ser fotografadas e famosas. Houve, contudo, a grande crise financeira logo a seguir. A vida nunca lhe mostrou um lugar brilhante e tranquilo para viver, a luta e a tenacidade são as suas grandes marcas.

Triunfo da estatística

Faz hoje entre 5 e 6 anos mais ou menos que aconteceu qualquer coisa de extraordinário na minha vida de que não me lembro porque devia estar a pensar fixamente nalguma coisa sem sentido. São memórias fortes como esta que nos fazem sentir acordados. Vontade de dormir.

sábado, 11 de junho de 2016

MF19. Ruth Orkin, 1921-1985 (EUA)

Fotojornalista e realizadora de cinema, filha única de uma actriz de cinema mudo, e um fabricante de barcos de brinquedo. Fez aos 17 anos uma viagem gigante de bicicleta, através dos EUA, entre Los Angeles e Nova Iorque, em que fotografou muito. Pode ter nascido aí a sua carreira brilhante de fotojornalista. Mas aos 22 anos ainda tinha de trabalhar como fotógrafa num night-club, e durante o dia fotografar bebés, para conseguir dinheiro para a sua primeira máquina fotográfica. Trabalhou como repórter para todas as grandes revistas norteamericanas e por isso conheceu diversas pessoas famosas, com quem estabeleceu sempre relações fortes. O seu trabalho mais genial, para mim, foi “American Girl in Italy”, fotorreportagem integrada na série “Don’t be afraid to travel alone”, sobre mulheres a viajar sozinhas pela Europa no pós-guerra. Esta foto diz quase tudo e é linda.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

MF18. Graciela Iturbide, 1942- (MEX)

Mais uma fotógrafa que começou a sua actividade nas artes visuais no cinema. Fortemente influenciada por Manuel Álvarez Bravo, cedo se virou para a fotografia. Os temas sociais, especialmente os que versam sobre a família e a realidade campesina do México, sua terra natal, encontram particular eco no talento artista. Interessam-lhe, de certa forma, um certo grotesco e as artes cénicas improvisadas. É autora de algumas das mais belas fotografias de costumes populares, em termos absolutos, incluindo casamentos, funerais e assuntos religiosos.