segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Sinto. 5. Que cartas já não.

"Houve um tempo em que, nos amores e nas paixões, se falhava de forma espectacular. Com baba e ranho. Dava-se tudo. Saíamos rasgados de pele e coração. Valia sempre a pena, mesmo quando perdíamos o chão.

Os erros, as faltas, as vertigens, o pé à beira do abismo existiam para nos lembrarmos de que somos humanos. A regra era cair e levantar, prontos para outra depois de lutos intensos, sofridos, partilhados. Agora tudo isso existe sob a forma de prevenção. Para nos lembrarmos do que não devemos fazer, dos riscos que não devemos correr, contra o vírus da solidão.

Fomos ficando higienizados. Da alma à cama. Uma espécie de “se conduzir, não beba” para evitar os males do coração. Como se pudéssemos dizer “se amar, não se magoe”.

Com o passar dos anos, aprendemos a contornar os sintomas a bem da decência, da pose e da anestesia geral ou local, conforme as necessidades. O importante é não dar parte de fracos.
O ciúme é uma coisa moderna, para ser compreendida. A discussão acalorada está fora de moda.
A vingança é um prato que não se serve frio nem quente nas relações mais conceituadas. É coisa do povo, ementa de vidas de tasco, entre um tiro de caçadeira e um facalhão de meter respeito.

O civismo entrou definitivamente na nossa intimidade para amansar os corpos, os gestos, as palavras. A postura é um fato de pronto-a-vestir que usamos para entrar e sair das relações. Talvez até já nem se rasguem roupas quando chega a hora. O sentimento não ferve, a aprendizagem das loucuras que fizemos é renegada e a história do que fomos não tem disco duro porque a caixa de mensagens é mais prática e descartável. De resto, já não há cartas para guardar porque ninguém as escreve. Quem as leria, de resto, se tivessem mais de 140 caracteres?

Como num poema do Eugénio, já não há nada que nos peça água. E estamos como ela: insípidos, inodoros e incolores. Leves. Capazes de ir do tudo ou nada sem efusão de sangue. Deve andar a escapar-nos o momento em que deixamos de olhar a vida nos olhos e a desregrada infinidade de coisas que vinha junto com ela."


Miguel Carvalho
in Revista Egoísta

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Sinto. 4. Esqueceste que a Temperança.



Nem o oposto de caos é ordem nem o oposto de verdade é mentira. A hora é de Temperança. Palavra que o desafio.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Sinto. 3. A importância de não ser amado.

Tudo tem o inefável aspecto de refrigério, quando percebemos que o amor foi ao longo da vida passando, mas não ficou. Então sinto esta força grande e relaciono-me com a noção de ser absoluto. Amor total e incondicional. Este ao menos não cai no chão. A música é a de "Fascination", e a tradução para português pertencerá sempre a Elis Regina:

Os sonhos mais lindos sonhei.
De quimeras mil um castelo ergui
E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão mil venturas previ.

O teu corpo é luz, sedução,
Poema divino cheio de esplendor.
Teu sorriso quente, inebria e entontece.
És fascinação, amor.

Os sonhos mais lindos sonhei.
De quimeras mil um castelo ergui
E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão mil venturas previ.

O teu corpo é luz, sedução,
Poema divino cheio de esplendor.
Teu sorriso prende, inebria e entontece.
És fascinação, amor.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Sinto. 2. A hora azul, do azul

L'Heure Bleue, tal como a cantou tão bem Françoise Hardy

c'est l'heure que je préfère,
on l'appelle l'heure bleue
où tout devient plus beau, plus doux, plus lumineux
c'et comme un voile de rêve
qu'elle mettrait devant les yeux
cette heure bien trop brève
et qui s'appelle l'heure bleue

c'est une heure incertaine, c'est une heure entre deux
où le ciel n'est pas gris même quand le ciel pleut
je n'aime pas bien le jour:
le jour s'évanouit peu à peu
la nuit attend son tour
cela s'appelle l'heure bleue

le jour t'avait pris
et tu te promènes
dans le soir de Paris
l'heure bleue te ramène

c'est l'heure de l'attente quand on est amoureux
attendre celui qu'on aime, il n y a rien de mieux
quand on sait qu'il va venir
c'est le moment le plus heureux
et laissez-moi vous dire
que ça s'appelle l'heure bleue
oui laissez-moi vous dire
comme j'aime l'heure bleue

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Sinto. 1. Castigo sem crime?

Papa anuncia que vai abandonar o cargo, à maneira do funcionário que dá 30 dias à empresa antes de sair. E como na empresa também, ninguém o pode demover da moção. De todas as perplexidades a que nos habituou nestas últimas décadas - em que foi apenas uma ténue sombra do homem brilhante que outrora foi - reduz-se a funcionário e diz que passará o resto da vida em oração. Em primeiro lugar, eu achava que ele era já homem de perfil orante, irredutível no seu posto. Depois, não se sente forçado a explicar melhor, absolutamente nada. Quando aceitou a eleição - a mesma que Martini rejeitou -, não era propriamente jovem, mas sentia-se com forças pra governar o ingovernável. Tento não pensar no assunto, detenho-me apenas na palavra "Papa". Vem do grego Pappas, e quer dizer "padre", ou "pai". Então o pai diz aos filhos, "vou ali pró cantinho até morrer, não consigo mais ser vosso pai". Por que não nos diz a verdade?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Permaneço. 50 (e último). Naufrágio.

Permanecer não é pra todos. É imperativo habitar a distância, percorrer em silêncio todos os corredores como se por debaixo de cada passada houvesse, escondida, uma mina de ouro. Saber sempre onde nasce o sol.

Naufrágio tranquilo e pacificador.