sábado, 7 de janeiro de 2017

Fiz figura de corpo presente

Fiz figura de corpo presente, que era
a única figura que eu sabia fazer.
O corpo estava presente, a alma não,
a alma tinha ido dar uma volta, a alma
tinha morrido. Não podia portanto
tê-la comigo de cada vez que era
preciso ficar, também não era preciso
falar, era só preciso ficar, por isso
não fazia mal. Sem alma o corpo
criava o tom de uma cor desapercebida.

Coisa visivelmente de outro tempo,
simbolista, renascentista, ou outra coisa
qualquer, tudo servia para me atirares
à cara que eu já não era deste tempo.
Embora por soalho e tecto sons de hoje
levantem tábuas no soalho, estalem
tectos. Esses sons, que são de ferro
e água, batem no sangue com descarada
arritmia, até que as pálpebras se fecham
e eu me lembro outra vez que sou
corpo. Sem alma. Mas abdicou a alma
de mim, abdiquei eu dela? Calma,
assim não vamos a lado nenhum.

A alma é sem dúvida um tema
muito interessante, mas eu não consigo
dar-me a quem não vê a guerra total
e persistente, o vazio controlado
pela ignorância, os crimes impunes,
a sombra cinzenta no futuro da humanidade,
a hipótese do grande estoiro final.
E insistes em falar-me da alma.
E de ajustes de contas, e do silêncio
quando as portas se fecham e ali
ficas, de mãos cruzadas sobre o peito
e com a merda de um sorriso arrogante
ainda a bailar nos lábios roxos.

Hélder Moura Pereira

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